Febre do Nilo Ocidental: o vírus transmitido por mosquitos que se espalha pelos EUA e pela Europa sem cura ou vacina
- Author, David Cox
- Role, Da BBC Future
Anthony Fauci teve uma notável carreira como um dos principais pesquisadores do vírus HIV em todo o mundo. Mais recentemente, ele foi o rosto do programa norte-americano de combate à pandemia de covid-19.
Mas o vírus que o hospitalizou recentemente é outro, muito diferente.
Em agosto, Fauci, com 83 anos de idade, começou a sentir sintomas de febre, calafrios e fadiga. Ele contraiu a febre do Nilo Ocidental, causada por um vírus transmitido por mosquitos.
O patógeno foi descoberto em Uganda, nos anos 1930. Mas Fauci não contraiu o vírus no leste africano.
Na verdade, um mosquito infectado supostamente o picou no quintal de casa, nos Estados Unidos — e estes incidentes estão se tornando cada vez mais comuns.
Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) declararam à BBC que 2 mil americanos contraem a febre do Nilo Ocidental todos os anos. São 1,2 mil doenças neurológicas potencialmente fatais e mais de 120 mortes, anualmente.
“Todos podem estar em risco”, afirma a professora de pediatria Kristy Murray, da Universidade Emory em Atlanta, no Estado americano da Georgia. Ela estuda o vírus do Nilo Ocidental há quase duas décadas.
“Uma simples picada de mosquito é tudo o que é preciso para ser infectado”, explica ela. “E, embora a forma grave da doença atinja principalmente os indivíduos mais idosos, os jovens também podem ficar doentes.”
No final de agosto de 1999, um médico infectologista do distrito de Queens, em Nova York (EUA), relatou ao Departamento de Saúde e Higiene Mental da cidade dois casos de encefalite viral, ou inflamação do cérebro. E casos similares foram identificados em hospitais vizinhos, dando início a uma investigação urgente.
Estimativas concluíram que, ao todo, esta misteriosa epidemia infectou cerca de 8,2 mil pessoas em toda a cidade. Foi o primeiro surto conhecido da febre no hemisfério ocidental.
Ninguém sabe exatamente como o vírus foi levado de partes da África, Oriente Médio, sul da Europa e da Rússia, onde circula há décadas, para os Estados Unidos. Mas pesquisas já demonstraram que as aves são os principais vetores do vírus.
Os mosquitos contraem o vírus quando se alimentam de aves infectadas. Depois, eles o transmitem para os seres humanos.
Desde aquele surto inicial em 1999, houve mais de 59 mil casos de febre do Nilo Ocidental nos Estados Unidos e outras 2,9 mil mortes. Mas algumas estimativas indicam que o número real de infecções é de mais de três milhões.
Existem agora preocupações cada vez maiores de que os surtos da febre nos Estados Unidos e em todo o mundo irão se tornar mais frequentes, devido às mudanças climáticas.
Estudos demonstraram que as temperaturas mais altas podem acelerar o desenvolvimento do mosquito, o índice de picadas e a incubação do vírus no inseto.
Na Espanha, o vírus é endêmico — e um surto sem precedentes em 2020 foi seguido por um período prolongado de aumento da circulação.
Este episódio gerou preocupações maiores. As infecções eram predominantemente assintomáticas, com apenas uma a cada cinco pessoas sentindo sintomas suaves. Mas os casos graves podem resultar em deficiências para toda a vida.
Em cerca de uma a cada 150 pessoas, o vírus pode invadir o cérebro e o sistema nervoso central, causando inflamações que podem custar a vida do paciente — e, em muitos casos, lesões cerebrais.
E pessoas com algum tipo de imunocomprometimento, com mais de 60 anos de idade ou portadores de diabetes ou hipertensão são particularmente vulneráveis.
“Com a hipertensão, achamos que o aumento da pressão no cérebro permite que o vírus cruze a barreira hematoencefálica com mais facilidade”, explica Murray.
Depois de acompanhar pacientes que sofrem de casos graves da febre do Nilo Ocidental por muitos anos, Murray afirma que a inflamação resultante pode causar grave contração ou atrofia cerebral. Nas varreduras, surgem frequentemente padrões similares às pessoas que sofreram lesões traumáticas do cérebro.
“Entre os pacientes com doença grave, cerca de 10% morrerão da infecção aguda e cerca de 70-80% irão sofrer consequências neurológicas de longo prazo”, prossegue Murray.
“Para os sobreviventes, a doença não necessariamente melhora; muitas vezes, ela fica pior. As pessoas relatam depressão, mudanças de personalidade, este tipo de coisas”.
Mas, apesar destes riscos inerentes, atualmente não existe vacina e nem mesmo tratamento específico que possa ajudar pessoas infectadas.
“Ela realmente se tornou uma doença negligenciada”, afirma Murray.
“Somente neste ano, recebi muitos contatos de pacientes recém-diagnosticados com a febre do Nilo Ocidental, perguntando ‘o que podemos fazer?’ E respondo ‘realmente não há nada’. O tratamento é simplesmente de apoio e parte meu coração ter que dizer isso a elas.”
Dificuldades técnicas e financeiras
Quando o assunto é a falta de medidas preventivas contra as infecções pela febre do Nilo Ocidental, uma das maiores ironias é que, há 20 anos, já existem vacinas seguras e de alta eficácia contra aquele vírus — mas para cavalos.
Entre 2004 e 2016, houve nove testes clínicos de possíveis vacinas para uso humano. Duas delas foram lançadas pela farmacêutica francesa Sanofi e as restantes por companhias de biotecnologia, instituições acadêmicas ou diversas organizações governamentais norte-americanas.
Todas elas são geralmente bem toleradas e induzem reação imunológica, mas nenhuma delas foi aprovada para o teste clínico de fase 3. Esta é a barreira final e mais importante para que uma vacina seja autorizada e envolve o teste da eficácia do tratamento.
O último destes testes, financiado pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, não saiu da fase 1 — a primeira etapa, normalmente destinada a confirmar se a intervenção é segura.
A diretora médica da Divisão de Doenças Transmitidas por Vetores dos CDC em Fort Collins (Colorado, Estados Unidos), Carolyn Gould, afirma que a natureza esporádica e imprevisível dos surtos de febre do Nilo Ocidental tem representado um grande obstáculo. O motivo é que o vírus precisa circular naquele momento específico para poder comprovar que a vacina está realmente funcionando.
“Alguns testes foram lançados durante um período tranquilo, sem muitos casos”, conta Murray.
“Mas houve um surto em 2012, quando tivemos mais de 2 mil casos somente no Texas (EUA) e mais de 800 deles eram casos graves. Por isso, se eles tivessem esperado alguns anos, poderiam ter todos os participantes necessários.”
Em 2006, um importante estudo de viabilidade econômica das vacinas concluiu que um programa de vacinação contra o vírus da febre do Nilo Ocidental provavelmente não resultaria em redução dos gastos do sistema de saúde.
Gould acredita que o enorme custo de desenvolvimento da vacina, combinado com benefícios ou retornos financeiros incertos, do ponto de vista das companhias farmacêuticas, tenha sido um grande obstáculo.
Mas diversas alternativas possíveis surgiram nos últimos anos. Cientistas recomendaram um programa de vacinação específico para pessoas com mais de 60 anos de idade, que sofrem maior risco com o vírus. Já Gould defende um programa destinado a regiões específicas dos Estados Unidos, onde há maior incidência dos mosquitos portadores do vírus.
Além disso, Gould acredita que o aumento das evidências sobre os efeitos de longo prazo das lesões neurológicas causadas pela doença poderia promover o desenvolvimento de vacinas.
As estimativas mais recentes indicam que o custo total dos pacientes hospitalizados com a febre do Nilo Ocidental é de US$ 56 milhões (cerca de R$ 305 milhões) e os custos de curto e longo prazo podem ultrapassar US$ 700 mil (cerca de R$ 3,8 milhões) por paciente.
“Estudos mais recentes demonstram que poderia ser economicamente viável desenvolver a vacina para grupos de alto risco em locais geográficos específicos”, segundo Gould.
“Do ponto de vista dos fabricantes, seria importante analisar o grande número de pessoas com maior risco de consequências sérias da febre do Nilo Ocidental, ao calcular as previsões de vendas.”
Considerando as mortes e deficiências neurológicas causadas atualmente pelo vírus, o presidente da Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas, Paul Tambyah, descreve a atual impossibilidade de encontrar uma solução como “falta de imaginação”.
“Todos pensam que é preciso fazer esse teste de fase 3 em massa nos Estados Unidos, o que é difícil para uma doença que aparece apenas por dois meses e meio do ano de forma imprevisível, já que, em alguns anos, você tem um surto massivo e, em outros, não”, explica ele.
Tambyah propõe um grande teste internacional, com centenas de locais de teste diferentes — e não só nos Estados Unidos, mas em regiões da África onde o vírus é endêmico. Seria uma forma mais eficaz de reunir as evidências necessárias.
Seriam necessários vários milhões de dólares de financiamento para lançar esta iniciativa. Mas ele afirma que, com a ajuda de parcerias entre os setores público e privado, reunindo recursos de diversos governos de países afetados e companhias farmacêuticas de pequeno e médio porte, seria possível reduzir o risco financeiro envolvido, caso o teste não conseguisse comprovar a eficácia da vacina.
“Existem alguns mecanismos possíveis para fazer com que isso aconteça”, afirma ele. “É preciso ter apenas a força de vontade de fazer algo a respeito.”
A busca de medicamentos
Da mesma forma que as vacinas, também é preciso encontrar tratamentos mais eficazes para as pessoas que sofrem a forma grave da febre do Nilo Ocidental.
Kristy Murray afirma que foram desenvolvidos dois possíveis medicamentos com base em anticorpos gerados artificialmente contra o vírus, chamados anticorpos monoclonais. Mas eles não progrediram além dos estudos com roedores. Seus desenvolvedores enfrentaram os mesmos obstáculos dos fabricantes de vacinas para idealizar um teste clínico adequado.
Murray acredita que a necessidade mais urgente é encontrar um medicamento que não só elimine o vírus, mas que possa também ser usado para aliviar a violenta inflamação no cérebro, que causa muitas das complicações neurológicas. Ela suspeita que, em alguns casos, o vírus se abriga nas células nervosas do cérebro, onde não é facilmente atacado.
“Ele cruza a barreira hematoencefálica e se instala dentro do cérebro, onde você tem a inflamação e as lesões”, explica Murray. “O problema é que muitos dos nossos antivirais existentes não conseguem atingir o cérebro, de forma que não chegam aonde precisam mostrar sua eficácia.”
Mas pode haver alternativas. Paul Tambyah acredita que podemos fazer uso de muitas lições da pandemia de covid-19.
Apesar de toda a corrida global para desenvolver um agente antiviral contra o vírus Sars-CoV-2, um dos tratamentos mais eficazes foi mesmo um esteroide barato chamado dexametasona. Sua eficácia foi identificada pelo Teste de Recuperação no Reino Unido, que examinou uma série de possíveis tratamentos.
Tambyah tratou de inúmeros pacientes com inflamação cerebral como consultor sênior sobre doenças infecciosas do Hospital Universitário Nacional em Singapura. A experiência o convenceu de que encontrar o esteroide certo para reduzir a inflamação pode, afinal, ajudar muitos pacientes a se recuperarem.
“O vírus do Nilo Ocidental é um flavivírus e não existe antiviral aprovado no momento para nenhum dos flavivírus, como dengue, zika ou encefalite japonesa”, afirma ele. “Acho que os esteroides provavelmente serão o futuro.”
Mas, em última análise, é preciso ter mais dados para identificar o medicamento mais adequado para combater o vírus do Nilo Ocidental. E Tambyah sugere que isso pode ser feito por meio de um estudo similar ao Teste de Recuperação britânico.
“Potencialmente, poderíamos recrutar pacientes com encefalite causada pela febre do Nilo Ocidental e incluir diversas intervenções, alguns esteroides, além de anticorpos monoclonais e talvez conseguíssemos uma resposta”, explica ele.
“Se houvesse a vontade de fazer algo a respeito, com financiamento suficiente dos governos de países afetados, poderia acontecer.”
Murray e Tambyah esperam que a presença da febre do Nilo Ocidental no noticiário, devido à doença de Anthony Fauci, possa ajudar a convencer as autoridades a dedicar mais dinheiro a esta doença tão negligenciada.
“Este vírus está aqui para ficar e iremos continuar a sofrer esses surtos”, destaca Murray.
“Se alguém como Fauci, que ocupa um cargo em que as pessoas o ouvem e respeitam, puder falar sobre o assunto, pode servir de auxílio para impulsionar mais financiamento para estudar o vírus e permitir que os cientistas se dediquem às vacinas e produtos terapêuticos.”
“Já faz 25 anos que a febre do Nilo Ocidental surgiu nos Estados Unidos e ainda não temos nada.”